Quando eu era menino em uma pequena cidade na Pensilvânia, nunca pensei muito no conceito de um beijo. Minha família…
Quando eu era menino em uma pequena cidade na Pensilvânia, nunca pensei muito no conceito de um beijo. Minha família sempre deu e recebeu meus beijos sem hesitação. Eu continuo a dar e receber beijos da minha esposa e filhos da mesma maneira indiferente.
Até uma noite – no plantão.
Eu trabalho no pronto-socorro de uma cidade de tamanho médio no sul do Oregon. Já era tarde no meu plantão. Chegou o telefonema: “Helicóptero no caminho, homem de 32 anos, ferida de bala na cabeça, auto-infligido, via aérea dificil, chegada em 3 minutos”.
A preparação usual segue. Fisioterapeutas respiratórios chegam para ajudar a atender. Enfermeiros organizam a sala de trauma e preparam acessos venosos e monitores. E então, esperamos.
Sempre achei nesses momentos, quando toda a preparação física está completa, que existe uma oportunidade. O desconhecido pode fazer com que até mesmo a melhor equipe médica sinta angústia. Eu uso essas oportunidades para lembrar a equipe de alguns pontos-chave. Primeiro, não podemos controlar tudo. Em segundo lugar, a equipe é habilidosa e precisa permanecer confiante dessas habilidades. Em terceiro lugar, fale somente quando necessário. E, mais importante, eu digo aos funcionários que acredito neles. E eu acredito.
O paciente entra. Ele parece horrível. Sua cabeça tem uma ferida de entrada na área da têmpora direita e uma de saída no lado oposto. O sangue cobria a cabeça e o cabelo. Sua boca estava cheia de sangue. O atendimento primário é direto. Via aérea, respiração e circulação, seguida de avaliação neurológica e exposição. A via aérea nos bloqueia. Ele tem um tubo endotraqueal no lugar, mas não está funcionando e precisa ser substituído por um tubo que permaneça seguro. Enquanto tentava visualizar as cordas vocais e aspirar sangue, removi o tubo endotraqueal primário. O sangue coagulado estava pegajoso e o novo tubo endotraqueal não passava. Eu usei o maior disponível. Passei cegamente, esperando que ainda estivesse no local apropriado.
Em seguida, eu estava ansioso para levar o paciente à tomografia. No entanto, seus sinais vitais se deterioraram. Primeiro, sua pressão sanguínea subiu para um nível muito alto, e sua frequência cardíaca diminuiu – conhecida como a “resposta de Cushing”. Existem passos que você pode dar para tratar esse fenômeno, mas sua presença significa morte iminente.
Eu pedi o tratamento usual. Não importava. Seu coração começou a diminuir ainda mais e perdemos o pulso. Por fim, voltamos ao ritmo do coração, mas, apesar disso, o pulso não retornou. Ele recebeu muito remédio, mas não teve um pulso efetivo.
Só então, a equipe de enfermagem me disse que a família havia chegado. Eu congelei. Uma onda de náusea se apoderou de mim enquanto imaginava o drama que poderia ocorrer. Em 2000, a American Heart Association recomendou a opção de Presença Familiar Durante a Reanimação (FPDR). Embora os estudos mostrem que as famílias querem estar presentes, ela foi adotada apenas lentamente na comunidade médica.
Decidi falar com a família do lado de fora da cortina da área de traumatologia. A esposa estava no início dos 30 anos, cabelos castanhos, penteados em um estilo reto. Apesar das lágrimas, ela parecia determinada. Os pais tinham entre 50 e 60 anos e vestiam trajes de negócios. Após uma breve interação, ficou claro que a esposa podia entrar na sala de trauma, mas os pais se sairiam melhor do lado de fora da sala.
Eu abri a cortina para a área de trauma e a conduzi para dentro. Ela estava tentando permanecer forte. Ela foi até a cabeceira da cama e estava visivelmente procurando um jeito de tocar o marido. Ele estava debaixo de um emaranhado de acessos, fios de monitorização cardíaca, tubos de ventilação e eletrodos de marca-passo. Era evidente que ela não sabia como se conectar com o marido – mas precisava – de uma maneira concreta e física. Seus olhos examinaram seu corpo procurando uma maneira de interagir, mas, não encontrando nenhum, tinha uma aparência triste e perplexa. Ela se inclinou sobre o rosto do marido e sussurrou: “Estou aqui, eu te amo”.
Com o passar do tempo, ficou claro que era fútil. O paciente estava sem pulso já há algum tempo e havia passado por tratamento extensivo sem sucesso. Fiz minha pergunta usual e preparatória: “Alguém se opõe a terminar os esforços de ressuscitação?” Nesse momento, a esposa do paciente se virou para mim. Ela percebeu que o momento era iminente. Ela sabia que esta seria a última vez na terra que seu marido estaria oficialmente vivo. Ela se virou para o marido e posicionou a cabeça de nariz a nariz com ele. Ela sussurrou: “Estou aqui. Eu te amo. ” Então, com o sangue endurecendo seu rosto e lábios, ela se inclinou e beijou-o nos lábios. Era genuína, carinhosa e não sobrecarregada pelo que os outros pensavam. Ela fez essa conexão que vinha tentando desde que entrou na sala de trauma. Ela fez isso de seu modo, apesar da insanidade das circunstâncias. Este foi um sinal genuíno de afeto que não foi embaraçado pelas normas sociais. A sala ficou em silêncio, com exceção do ventilador. Ninguém se atreveu a falar. Fomos todos santificados pelo mesmo espírito. Foi um momento sagrado. Você poderia dizer que ela queria que durasse para sempre, e de alguma forma – nós também, mas ela percebeu a impraticabilidade desse pedido não-verbalizado. Ela terminou o beijo e se virou para mim. Ela olhou para mim e acenou com a cabeça ligeiramente – reconhecendo o inevitável.
Eu declarei o óbito as às 01:31 horas. Agradeci a todos pelos seus esforços.
Eu nunca saberei que eventos levaram este homem a tirar sua vida. O que eu sei é que ele foi amado nesta terra por pelo menos uma pessoa. E agora, ao beijar minha esposa ou filhos por um “boa noite” ou “sem um por que”, eu faço isso com um tom ligeiramente diferente. Eu entendo, com um pouco mais de profundidade, o que um beijo pode significar.
Lee David Milligan é um médico de emergência.
Fonte: Kevin MD
Traduzido por: Nathalia Leite