Tive uma infância complicada – fui uma criança que deixou de brincar. Com 7 ou 8 anos, a rua em que eu morava era rua de lazer. Para quem não sabe, eram ruas que a Prefeitura fechava para diversão. Era uma festa só – havia campeonatos de vôlei, queimada, brincadeira de pega-pega, esconde-esconde. Eu era alta quando criança, e sempre era chamada pelos times. Eu era uma criança que se sentia o máximo. Coisas de criança.
Mas sempre eu brincava um pouco e morria de falta de ar, aí eu tinha que parar. Como não sabia o que eu tinha (e ninguém sabia) eu voltava a brincar e tudo começava de novo. Até o dia em que desisti de brincar. Nesta época eu tinha 10 anos e com essa idade aprendi a fazer tricô… rsrsrs.
Mesmo assim não adiantou. Eu tinha falta de ar tomando banho, indo para a escola, indo da sala para a cozinha para jantar com a minha família. Parei de jantar com a família e jantava sozinha na sala. Nessa época começaram os desmaios.
Meu pai trabalhava em um hospital: era motorista de ambulância e conhecia todo mundo lá dentro. Fui levada a vários médicos que não encontraram nada de errado comigo, e foi nessa época que meus pais foram aconselhados a me levar a um psiquiatra, pois o que eu tinha era provavelmente “psicológico”. Meus pais encontraram um santo médico psiquiatra que descobriu em uma consulta o que eu tinha. De acordo com ele, eu tinha ciúmes da minha irmã e desmaiava para chamar a atenção. A orientação dele foi para que toda vez que eu desmaiasse, meus pais me batessem, que eu voltaria a acordar. Conclusão: apanhei muito, todas as vezes que eu desmaiava eu apanhava e acordava apanhando. Não adiantou, mas apanhei até os 16 anos. Nessa época eu tinha aprendido tão bem a viver com o que seja lá que eu tivesse, que meus desmaios diminuíram. Na época de educação física no colégio, eu sempre me machucava de propósito para não fazer a aula, pois se eu fizesse, eu desmaiava e, como meus colegas sabiam que eu tinha “problemas psicológicos”, tiravam a maior gozação quando eu desmaiava. Quando descobri que machucada eu não precisava fazer a aula, comecei a providenciar um machucado por semana. Funcionou!!!
Aos 18 me casei, e na gravidez fiquei um pouco apreensiva com as minhas faltas de ar. Procurei um cardiologista no sexto mês de gravidez, que fez um eletrocardiograma e chegou a conclusão de que eu “provavelmente” tinha Prolapso da Valva Mitral.
Três meses depois minha filha nasceu. Era 1 de outubro de 1981, uma quinta feira. Ela nasceu às 14hs. Às 19hs desmaiei e disseram que foi pela perda de sangue, pelo esforço do parto, etc. Tive a minha filha no mesmo hospital que meu pai ainda trabalhava, ou seja, todos lá sabiam do meu “problema psicológico”.
No sábado de manhã tive alta e fui para casa. Foi uma das piores épocas da minha vida. Eu não podia nem levantar a cabeça do travesseiro, que eu ficava roxa e sem ar. Para ir ao banheiro tinham que me carregar. Fiquei assim no sábado e no domingo. Na segunda feira, meu marido e meu pai viram que algo estava errado e me levaram de volta para o hospital. A primeira coisa que fizeram foi ver se estava tudo bem com relação ao parto, e estava. O médico foi escutar meu coração e lembro até hoje da cara dele. Meu coração estava com batimento de 198 por minuto e eu estava deitada. Viram que tinha alguma coisa errada e me internaram. Era 5 de outubro de 1981. Começaram a fazer muitos exames e nunca havia um diagnóstico.
No dia 15 de outubro de 1981, ainda no hospital, tive minha primeira parada cardíaca às 7hs da manhã. Eu voltei. Às 8:17hs tive outra e novamente voltei. Às 10:19hs tive a terceira e não voltei mais. Nesta manhã tive uma sequencia de 18 paradas cardíacas, entrei em coma e acordei 57 dias depois, na UTI do Hospital São Paulo.
Enquanto estava em coma, fiz o meu primeiro Cateterismo e descobriram que eu tinha apanhado muito de graça, pois meu problema não era psicológico. Eu tinha Hipertensão Pulmonar Primária. O prognóstico não foi bom: chamaram meus pais e meu marido e informaram que eu não sairia viva da UTI e que, se por milagre eu sobrevivesse, eu teria sequelas irreversíveis. Era 1981 e conhecia-se muito pouco sobre esta doença.
No dia 11 de Dezembro de 1981, eu simplesmente acordei. Estava toda entubada, respirando por pulmão artificial e com tubos em todos os buracos possíveis. Não me lembrava de ter tido um bebê, não me lembrava de nada do que tinha acontecido e não conseguia me mexer. Todas as juntas do meu corpo estavam praticamente atrofiadas. Lembro-me de ter sentido uma ardência nas costas. Depois eu soube que era princípio de escaras.
Aos poucos minha memória foi voltando e eu só pensava em ver minha pequena bebê, mas ela não podia entrar na UTI. Com o tempo também voltei a falar. Na UTI faziam exercícios nas minhas pernas, braços e pescoço. Os movimentos foram voltando aos poucos. Depois comecei a ver a carinha da minha mãe, do meu pai, do meu marido e da minha pequena Daniella através da janelinha de vidro da UTI.
No dia 12 de fevereiro de 1982 eu tive alta da UTI e fui para um quarto ao lado. Nessa época, eu já dava voltas nos corredores do hospital em uma cadeira de rodas. No dia 22 de fevereiro de 1982, eu fui para casa e não era mulher nem para ir ao banheiro sozinha, mas fui melhorando. Tinha crises e me levavam para o hospital, mas não havia nenhum remédio na época: apenas Dilacoron, que melhorava as crises por alguns dias e depois começava tudo de novo.
Eu não podia tomar anticoncepcional e sou do tipo que engravida lavando cuecas. Em 1984 fui ao médico para tentar algum método contraceptivo e ficou decidido que eu colocaria um DIU. O médico marcou a data, e quando fui ao consultório para colocar o DIU não pude coloca-lo, pois estava grávida do meu segundo filho. A ordem do médico foi imediata: faremos um aborto!!!. Eu não podia permitir. Fugi de casa, me escondi na casa de praia de uma amiga e voltei apenas quando já estava no quinto mês de gravidez – eles não tirariam meu filho. Minha gravidez foi inteira de pavor, de morrer e deixar meus dois bebês. Meu parto seria com anestesia geral, e eu não queria, pois meu maior medo era não acordar da anestesia e não poder ver meu filho, nem que fosse uma única vez. Meu pequeno Daniel nasceu no dia 26 de maio de 1985. Entrei em coma novamente logo após o parto, mas desta vez foram apenas 16 dias.
As crises continuavam e sempre era a mesma coisa: eu ia para o hospital de novo, fazia prova de função, fazia cintilografia com perfusão, fazia gasometria… e nada melhorava. Os anos foram passando…
Nesta época resolvi que não iria mais me tratar em hospital nenhum. Se fosse para morrer, eu iria morrer na minha casa, com a minha família. Essa decisão aconteceu em 1999. E fiz isso, levando minha vida sem fazer nenhum tipo de esforço, sem subir escadas, tomando banho frio (o vapor faz eu me sentir mal até hoje), andando em câmera lenta para socorrer minha filha e meu filho quando eles caíam e se machucavam e etc.
Fui piorando e não voltava ao médico. E continuei piorando. Lembro que uma vez eu estava lendo a revista Veja com o Marcos Valério na Capa, era 2005, e, por incrível que pareça, havia uma notinha de fim de página dizendo sobre um médico chinês que estava testando Viagra em crianças com HAP. Achei muito estranho ver o nome desta doença na Veja, mas meu primeiro ato foi pegar a revista e ir direto para o hospital. Eu não pisava lá já fazia mais de 10 anos. Encontrei minha médica e fui direto ao assunto. “Quero Viagra”, me dá uma receita.
Ela conversou comigo, brigou comigo pela ausência, e tudo o mais e disse que precisava ver se eu era compatível com o uso do Viagra. Após vários exames, fiquei sabendo que eu não era compatível. Nesse momento ela me disse sobre as pesquisas de um novo medicamento e acabei sendo uma das poucas escolhidas para participar dele. Comecei com o remédio em agosto de 2005 e tomo até hoje.
Minha vida mudou. Hoje eu tenho vida. Com alguns cuidados é claro, mas terminei minha faculdade, trabalho como qualquer pessoa normal e estou fazendo minha Pós Graduação.
Não sei o que haverá com cada um de vocês, ou com cada um de nós com este nosso problema em comum. Mas, afinal, quem é que sabe? Não é preciso ter HAP para não saber do futuro. Isto é inerente ao ser humano.
Eu deveria ter morrido aos 10 anos, aos 18 anos, aos 21 anos e por aí vai.
Fiz 50 anos em 17 de fevereiro deste ano, 2013, e ganhei meu primeiro neto (filho daquela minha filha que nasceu em 1981, lembram?) e estou muito bem graças a Deus!!!
Ou seja, estou no lucro!!!
Isabel Cristina de Andrade